sexta-feira, janeiro 30, 2009

Poema Em Linha Recta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

8 comentários:

Jorge Pinheiro disse...

É espantoso o nosso Fernando.

Gustavo disse...

putaqiupariou!
pensei nessa poesia ontem!
espantoso?
mesmo!
abs,

Gus

Anónimo disse...

Pois é.

roserouge disse...

É lindo, este poema. Um amigo falou-me dele ontem porque estava zangado com a vida e com os "amigos" que lhe apontam constantemente o dedo como se estivessem acima de qualquer pecado. Depois de o ouvir durante 2 horas, levei-o para o Lux, onde depois de algumas cervejas, ainda declamava o poema em linha recta. Queres-te calar com essa merda? Já não te posso ouvir! Desculpa, Bézita, hic, voume zá galar, hic, não falo maiiij naaada, hic...

Jorge Pinheiro disse...

Imaginem este gajo a blogar!

roserouge disse...

Quem, o Naundinho?

Jorge Pinheiro disse...

CLARO. Era devastador!

roserouge disse...

Olha, nunca tinha pensado nisso, és capaz de ter razão! Alucinação não lhe faltava...devia ser do absinto puro que ele bebia no Martinho da Arcada...