segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Woodstock Revisited

Durante três dias cerca de 400 mil pessoas assistiram a um festival rock que ficou para a história como o momento mais alto da geração que percorreu os anos 60. Em Woodstock viveu-se uma experiência única, cuja dimensão nem sequer foi compreendida na altura. Woodstock decorreu perto de Nova York nos dias 15, 16 e 17 de Agosto de 1969.

É claro que na altura eu era uma criança, andava na escola primária, sabia lá o que era o Woodstock, passou-me completamente ao lado. Só mais tarde quando comecei a ouvir música a sério é que fui tomando conhecimento de certas coisas. Lá em casa ouvia-se música, mas a dos gadelhudos nem por isso. Até que, um dia, em Agosto de 1989, veio parar-me às mãos uma revista, da qual não me lembro o nome, mas que trazia um artigo grande de 11 páginas sobre o Festival de Woodstock - que nesse mês comemorava 20 anos - num exclusivo Rolling Stone/Face. Arranquei aquelas 11 páginas e guardei-as comigo este tempo todo, sabe-se lá porquê. Parecia que adivinhava que ia ter um blog, vinte anos depois. Não vou aqui filosofar nem dissertar sobre o festival em si, para isso há óptimos sites na net, até porque já muito foi dito, publicado e especulado sobre este assunto. Nestas onze páginas o que se pode ler são os relatos vividos na primeira pessoa por protagonistas directos, tanto do público, como alguns músicos intervenientes, tais como Carlos Santana, Richie Havens, Arlo Guthrie, Melanie Safka e Country Joe McDonald e até um dos editores-sénior da revista Rolling Stone, David Fricke que, na época, era um adolescente de 17 anos e que fazia parte da assistência. Os textos que se seguirão ao longo de alguns dias, serão reproduzidos integralmente. Eu até podia esperar pelo próximo mês de Agosto, altura em que se comemora o 40º aniversário, mas achei melhor não. Como diz o velho ditado: “Guarda que comer, não guardes que fazer”. Venham as histórias.

David Fricke
"Sempre que alguém pergunta qual a minha melhor recordação de Woodstock, nunca me lembro dos solos assanhados de Hendrix nem do sonoro “F-U-C-K” de Country Joe, dos banhos nus ou das viagens de ácido. O que primeiro recordo é sempre esparguete e cachorros quentes.
Foi isso que tive para o pequeno-almoço de sábado de manhã, o segundo dia do festival. E essa era toda a comida que eu e o meu grupo de amigos-desejosos-de-ser-hippies – seis ao todo, incluindo eu, acabados de chegar aos 17 anos – tinha para o fim-de-semana. A melancia que tínhamos trazido de Filadélfia já era história, vítima da espontânea generosidade de sexta-feira à tarde quando estávamos engarrafados no enorme parque de estacionamento anteriormente conhecido por estrada 17B. Foi um autêntico gesto tirado do “Livro de Etiqueta da Geração do Amor”, passar talhadas de melancia através das janelas da nossa carrinha VW a outros peregrinos do festival que tinham desistido de chegar ao local com os seus carros.
Visto agora, pode parecer um pequeno prazer sem importância. Mas, na altura, Woodstock para a maioria das pessoas que lá estiveram, ainda não era uma coisa importante na história da música pop/rock. Foi o inesperado, uma série de epifanias e acontecimentos momentâneos – nascimentos, mortes, sexo, doença, actos de simpatia humana e aproveitamento comercial – que fizeram história. A única maneira de perceber o que estava a acontecer era dos helicópteros que cruzavam os ares entre o palco e o Holiday Inn, também conhecido por Base da Tranquilidade, nos arredores de Liberty, Nova Iorque, de onde partiam os artistas. Lá de cima, podiam ver-se os momentos de impacto e interacção, centenas de milhar deles, que fizeram do festival um acontecimento gigantesco. (...)

(...) Nos 20 anos que passaram desde que Jimi Hendrix apresentou na madrugada de segunda-feira 18 de Agosto, a sua uivante versão do hino norte-americano, Woodstock foi analisado, censurado e vendido para além de todas as proporções do evento. Foi também a incarnação do último sonho da utopia dos anos 60 e o último dos fins-de-semana selvagens de uma geração ingenuamente esperançosa.
Quando desaparecer todo o folclore, a Feira de Música e Arte de Woodstock – que teve lugar a 15, 16 e 17 de Agosto, na quinta de Max Yasgur, perto de Bethel, Nova Iorque – não passará de um espectacular “acidente”, um improvável choque de acontecimentos, energias e expectativas, produzidos pela promessa de um fim de semana diferente, cheio de rock’n’roll , porque o que começou por ser um potencialmente lucrativo mega-concerto ficou rapidamente sem controlo. As notícias da rádio e dos jornais nas semanas anteriores não diziam uma palavra sobre a reunião de tribos ou a alvorada de uma nova geração. O factor de atracção era apenas a música porque Woodstock programou o maior e o mais prestigiado elenco do rock alguma vez reunido no mesmo palco desde o festival de Monterey em 1967 e porque surgiu na sequência de vários acontecimentos discográficos importantes como o álbum “Electric Ladyland” de Jimi Hendrix , a ópera “Tommy” dos Who, os primeiros LP dos Band e a primeira série de singles, que se tornaram clássicos do rock norte-americano, dos Credence Clearwater Revival.

Ausentes estavam apenas os Beatles, Rolling Stones, os recentes Led Zeppelin e Bob Dylan. O festival também registava algumas lacunas no capítulo da música negra e soul, se não se contar com algumas distintas excepções: Sly and The Family Stone, Richie Havens e Santana. Apesar do desequilíbrio do elenco, Woodstock era a grande oportunidade para saber do estado da música no fim da sua segunda e mais tumultuosa década. Afinal não foi para isso que serviu. A maioria dos artistas actuou em más condições: os Greatful Dead ficaram sem corrente eléctrica a meio da sua actuação e os Jefferson Airplane esperaram 17 horas antes de entrarem em palco na madrugada de domingo.
Para um rapaz de 17 anos farto de trabalhar num centro comercial e que não podia frequentar os locais de diversão nocturna devido às restrições relacionadas com a idade, a prestação cheia de calor latino de Santana foi reveladora e libertadora. Mesmo que não tenha acabado com a guerra no Vietname havia um poder implícito no som de quase meio milhão de pessoas pronunciando “F-U-C-K” em uníssono com Country Joe McDonald. Eu sei o que digo: a minha voz está no disco.

Mas Woodstock, promovido por dois empresários do rock, Michael Lang e Arnie Kornfeld, o licenciado pela Universidade de Yale, Joel Rosenman e o herdeiro de um fabricante de cosméticos, John Roberts, provou ser o início da contra-cultura. Os blues martelados e o boogie anfetaminado dos Mountain e Ten Years After – bandas que chegaram desconhecidas a Woodstock e saíram com o manto dos astros sobre os ombros – foram a antecipação daquilo em que se iria transformar a arena do rock durante a década de 70. (…)
(…) Vinte e quatro horas após o encerramento do festival, nasceu a sua mitologia. Na noite de segunda-feira, os Jefferson Airplane, David Crosby e Joni Mitchell – que não esteve no festival mas posteriormente escreveu o seu hino – estiveram em directo no programa televisivo de Dick Cavett para dar a sua eufórica opinião sobre os acontecimentos do fim-de-semana, completada pela apresentação em directo e sem censura da canção “We Can Be Together”, dos Jefferson Airplane – que cantavam “Up Against The Wall Motherfucker” quando já era apresentado o genérico. O filme e o triplo álbum logo a seguir editados, aceleraram o processo.
A vaga de festivais nos dois anos seguintes amargou irremediavelmente a memória e a fantasia. A tragédia durante a actuação dos Rolling Stones no mal organizado festival de Altamont – quando um negro que tentou subir para o palco foi assassinado pela segurança, constituída por Hell’s Angels pagos em grades de cerveja – aconteceu menos de quatro meses depois de Woodstock e foi rapidamente entendida como o fim oficial dos anos 60, arrasando a esperança no futuro anunciada durante os três dias de paz e amor.

O próprio Woodstock demonstrou como a natureza humana pode ser desagradável. A multidão deixou atrás de si, lixo e sacos-cama suficientes para cobrir uma cidade com o dobro da área do festival. O ex-comando Yippie, – Youth International Party – Abbie Hoffman demonstrou uma incrível ausência de tacto e falta de respeito pelos seus pares ao saltar para o palco durante a actuação dos Who gritando: “Eu penso que isto é um monte de merda enquanto John Sinclair apodrece na prisão”, sem ninguém perceber se ele estava contra o festival ou contra a banda ou contra “Tommy” – que o grupo tocava na altura. Ao menos Pete Tonwsend manifestou-se com veemência contra o militante radical e a invasão de palco, batendo-lhe furiosamente com a guitarra. (…)
(…) As diferentes emoções demonstradas a propósito do aniversário de Woodstock estão directamente relacionadas com os resultados do próprio festival. Ele foi, na mesma medida, um êxito e um falhanço, como qualquer acidente impossível de se repetir. De qualquer maneira, continuo a pensar em esparguete e cachorros quentes sempre que alguém pronuncia a palavra “Woodstock”. E nunca mais comi assim."
(continua)

13 comentários:

Anónimo disse...

Aguardo a continuação, ficando esta entre as melhores postagens deste blog! E olha que tem muitas memoráveis! Parabéns pela forma direta e bem humorada de contar as coisas!

Bjs

roserouge disse...

Amanhã há mais! Não posso pôr tudo duma vez. Faltam as histórias dos músicos, que são soberbas! Bj e obrigada.

Paulo Lontro disse...

Está uma delícia este teu espaço Rose. ;)

Unknown disse...

Gostava de lá ter estado mas ir de Moçambique para Woodstock, sendo menor, sem dinheiro e nem "autorização" dos pais, era díficil.
Além do mais falava inglês de praia (ainda falo). Servia para meter conversa com sul-africanas e rodesianas mas não dava para entrar no slang da Big Joint. Acabei por ver o filme no cinema, várias vezes. Hoje tenho DVDs. No futuro, espero finalmente visitar o local, talvez numa excursão de hippies sexagenários reformados...

José Louro disse...

Li tudo, tudo. Curioso, não conhecia o cartaz. Excelente post de facto.

roserouge disse...

António: curioso, nessa época também vivia em Moçambique, em Nacala, a norte de Nampula. Guardo excelentes recordações.

José: o poster é lindo, só tenho pena que não se consiga ampliar, do lado esquerdo estão os nomes das bandas.

Anónimo disse...

RR
Essa série de posts promete !

Well ... Inesquecível, Woodstock marcou uma geração.
Lembro como se fosse hoje o dia em que fomos assistir o filme, não lembro pela sugestão de uma crítica de jornal ( além da música o filme era uma novidade pelo tipo de edição que fizeram, original para a época ) ou pelos comentários dos amigos.
Outros tempos, na Tv não havia nada parecido com MTV nem videoclips, nossa banais revistas não tinham matérias sobre rock.
Foi um choque. Saímos chapados do cinema. Este filme foi um dos ritos de passagem de nossa juventude.
E continua sendo, comprei o DVD dele alguns anos atrás,meu filho o assiste ainda umas três vezes por ano, de olhão arregalado.

E o logotipo do festival é fantástico.

Jorge Pinheiro disse...

Aguenta aí. Não tires já. Amanhã quero ler com calma!

roserouge disse...

Peri, a minha filha tem 23 anos e ouve música dos anos 70, adora os Doors. A boa música é intemporal, ouve-se sempre através de gerações. E os anos 70 produziram grandes músicos, grandes bandas. Acho que só vi esse filme uma vez e já não me lembro de nada...

Jorge, o próximo post Woodstock só vou pôr ao fim da tarde.

peri s.c. disse...

RR
O meu, 21. Toca muito bem guitarra (nos realizamos de certa maneira nos filhos, eh, eh) Acompanha música atual e ... ouve também Doors, Who, Hendrix, Led, e toda a turma daquela época de ouro. Eram bons, muito bons. Depois, uma certa mesmice. Foi quando voltei para o samba .

roserouge disse...

Peri, não concordo totalmente contigo, no final dos anos 70 apareceu o Punk/New Wave e dali sobraram algumas bandas fantásticas que entraram pelos anos 80. Ainda hoje os oiço e fizeram história. O que a música tem de bom é que é infinita e estão sempre a aparecer coisas novas, novos músicos com novos conceitos. Também gosto de música electrónica e de dança. E também de alguma música brasileira. Forró e essas coisas, nem por isso...

Jorge Pinheiro disse...

Toda a música é boa quando é boa! Bela descrição. Grande balbúrdia foi aquilo tudo. Quero mais episódios... Os Doors também não tocaram aqui, certo?

roserouge disse...

Não, os Doors não tocaram, nem os Led Zeppelin...a emissão segue dentro de momentos!