terça-feira, novembro 18, 2008

Nenhum Olhar

“José olha o sol de frente e pensa. Pensa na mulher e no que o diabo lhe disse na venda sobre ela. E pensa no dia em que as cigarras se calarão na planície e os ramos mais finos dos sobreiros e das oliveiras se tornarão pedra. Trinta anos mais tarde, José, filho de José, olha o sol de frente e pensa. Pensa na mulher do primo e no que o diabo anda a dizer ao primo na venda sobre eles. E pensa no instante em que nada restará, nem mesmo o silêncio que fazem todas as coisas a olhar-nos (...)

O romance “Nenhum Olhar” de José Luís Peixoto, é a história de José, o pastor, e da sua mulher, perdida nos braços de um gigante com quem mantêm uma relação inquietante. Também temos a cozinheira, que faz esculturas com legumes e que se casa com um dos irmãos siameses, Moisés e Elias, que estão ligados pelo dedo mindinho. Um dia, o pai dos siameses levou-os à venda para que fossem separados, mas acabou por desistir porque não conseguia decidir qual dos gémeos iria ficar com um dedo a menos. E há também uma prostituta cega. E um homem que está numa casa a escrever. E o demónio, sempre o demónio. E o Alentejo. E o sol, muito sol. A riqueza de todas estas personagens é o seu lado fantástico, cruzamento de contos de fadas, lendas de mouras encantadas e presságios de morte acompanhando sempre qualquer incursão. Li este livro em dois dias e durante estes dois dias só comi couves com batatas, porque os personagens só comiam couves com batatas. Para mim, José Luís Peixoto é a última grande revelação da literatura portuguesa.
Alguns anos mais tarde, conheci JLP na estreia duma peça no Teatro da Trindade onde uma amiga comum desempenhava um papel, fui falar com ele sobre este romance e do quanto tinha gostado e ele escreveu-me isto num papelinho qualquer:

“O sol, bola de fogo, levantou-se rente à terra, mais tarde que nos outros dias, derramando um rio incontrolável de chamas pelas ruas e pelos campos, queimando o que poupara na véspera.”
(…) O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar.”

2 comentários:

Jorge Pinheiro disse...

Pois não conheço. Vou ver se leio, embora tenha uma lista de espera maior que a légua da Póvoa (... alguém me sabe explicar esta expressão?)

Menina do mar disse...

Uau!!! que sorte!!! Sou fã!! Amo!! O primeiro que li foi o Morreste-me.. na altura disse-me pouco, hoje diz-me tudo!
Beijos