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Bertrand Russell in "O Elogio ao Ócio"
Ana Cristina Pereira - Jornal Público
Por ser um artigo muito longo, não copiei tudo. Mas vale a pena lê-lo na totalidade aqui.
E então a coisa vai ser assim: levantar bem cedinho amanhã de manhã. Encontro com alguns amiguinhos em Lisboa, em local a combinar. Atravessar a ponte, rumo ao Meco. Encontro com outros amiguinhos que já lá estão desde ontem. Ouvir as novidades e impressões deixadas pelos concertos das noites anteriores. Rir muito e dizer repetidamente "ya ya que fixe". Alagartar com o que resta da carcaça nas areias da praia. Dar umas cacholadas nas ondas, para refrescar as idéias e soltar o ranho que se vai acumulando ao longo da semana. Dizer disparates. Rir muito. Fazer xixi no mar, a única maneira de aquecer a água durante breves instantes. Comer uma ou duas pistoletes (sandochas) de atum com tomate. Beber água. Falar sobre as últimas coisas que se andam a ler e outras tipo "o quéquetensfeito?". Comer pêssegos, ameixas e melão partido aos quadradinhos numa tuperuére. Beber mais água. Começar a arrumar a tralha e recolher o lixo para vir embora. Sacudir a areia dos pézinhos e limpar bem aquela que o vento foi colocando nas orelhas e nas pregas das partes pudibundas. Vestir a mesma roupa. Constatar que não vale a pena tomar duche, vai mesmo assim, o cabelo todo desgrenhado e a pele a saber a sal. Rir muito, dizer mais coisas sem sentido nenhum e beber mais água. Chegada ao recinto do festival e começar a comer pó. Ir à procura do bar mais próximo. Deambular por ali, de copo de plástico na mão e a saltitar de palco em palco para conseguir ver o mais possível para depois ter assunto de conversa com os amigos. Bater palminhas segurando o copo com os dentes, assobiar e continuar a rir muito. Dar beijinhos aos The National e abracinhos aos Spoon. Beber mais umas jolas para limpar a garganta daquela poeirada toda. Gemer. Gemer muito e pensar "qu'esta merda nunca mais acaba, já não sinto os pés". Ai. Bater mais palminhas, clap clap clap, dar muitos pulinhos e gritinhos quando Prince pisar o palco. Já cá veio duas vezes e eu nunca vi. Devia de andar distraída com outras coisas. Jiboiar um bocado por ali no chão ou assim, irreconhecíveis com tanta terra em cima, podres de cansaço, ah ganda concerto e tal, mas muito contentinhos também. Suspiros e mais gemidos de dor, todos juntos. Aaaai... Regressar a Lisboa não sei a que horas, não sei se no domingo ou segunda, logo se vê. Oh it's such a perfect day, I'm glad I spent it with you... (Lou Reed).
Estive a rever o embate televisivo, em 1980, entre Catherine Ringer e Serge Gainsbourg. A primeira coisa que ali vemos é Ringer, cantora do duo Les Rita Mitsouko e moderna a cheirar a novo, sentada ao lado de um moderno consolidado, o volúvel Gainsbourg. Não tarda a verificar-se o previsível choque, talvez geracional. Ringer, empenhada em épater o moderno consolidado, contou que tinha participado em filmes porno e foi interrompida por um depreciativo Gainsbourg, que lhe disse que isso era simplesmente fazer de puta e não podia causar mais vómitos. A conversa enrolou-se durante um bom bocado, porque Ringer (genial artista que me revelou Sergi Pàmies, o Inverno passado) recusou-se a aceitar que ser actriz porno fosse repugnante e ela, uma puta. Gainsbourg insistiu que ser puta era nauseabundo. Ringer disse então que quem era asqueroso era precisamente ele, mas acabou por aceitar, com um meio-sorriso, que o seu passado era repugnante. "Em todo o caso - desculpou-se Ringer - o meu trabalho faz parte da aventura moderna". E então o caldo entornou-se de vez, e o momento acabou por se tornar memorável.
- Ah, não! - disse um exaltado Gainsbourg - A aventura moderna não é repugnante. Nós temos ética.
Se Rimbaud, no séc. XIX, semeou a essência do ser moderno em França, Gainsbourg, na mesma França, apontou o fim do "vale tudo", marcou os limites morais da vanguarda e deu o primeiro pontapé na modernidade sem ética. Um momento histórico.
Fonte: Diário Volúvel - Enrique Vila-Matas, 2008
Teorema - Fevereiro, 2010